31.5.06
Vitorino Bastos – Um Ídolo da Nossa Adolescência
Fui hoje desagradavelmente surpreendido com a notícia infausta do falecimento de um companheiro de escola, do período da adolescência, Vitorino Bastos.
Apesar de há muito lhe haver perdido o rasto, conservo ainda fartas recordações da sua presença, até pelo menos metade da década de 80, quando ainda frequentávamos a mesma barbearia, já então convertida em Salão de Cabeleireiro de Homens e Senhoras, ali ao fundo da Rua Laureano de Oliveira, perto do Apeadeiro dos Caminhos de Ferro, da então suburbana vila de Moscavide.
Mesmo depois de termos saído de Moscavide, continuámos a frequentar os cuidados do Cabeleireiro Martins, homem de mãos adestradas, com vários diplomas de prémios ganhos em concursos nacionais e internacionais expostos nas paredes do seu modernizado salão. A casa dos pais do Vitorino ficava quase defronte deste estabelecimento e ali o encontrava ainda nos anos 80.
Era ele o nosso Vitorino, moço bastante popular, em Moscavide, mesmo para os benfiquistas como eu, que com ele joguei futebol e andebol, nos anos 60, nos Campeonatos Escolares e nas partidinhas dos intervalos das aulas, na velha Escola Industrial Afonso Domingues, EIAD, de Marvila, umas vezes na sua equipa, outras como adversário.
Encontrávamo-lo também, já depois de interrompida a sua curta vida estudantil, nos finais dos anos 60, na pastelaria Rita, na Avenida de Moscavide, sempre muito festejado, obviamente, pelas exibições que fazia em Alvalade e pela aura de estrela que o cercava, embora sem nada que se assemelhasse ao exagero alienante que hoje se observa, quanto ao interesse pelo futebol.
Tinha um porte atlético de grande envergadura, logo aos 12-13 anos, o que contrastava com a nossa comum fragilidade, apesar de ser pouco mais velho que a maioria de nós, que com ele nos defrontávamos. Fez-se um homenzarrão muito cedo, enquanto nós fomos crescendo fisicamente, aos poucos, sem nunca chegarmos, contudo, nem lá perto, à sua notória robustez.
Era um portento de força, com um estilo muito próprio de jogar, com arranques impetuosos, variações de velocidade e remates fortíssimos. Todos o queriam sempre na equipa, porque ele, na verdade, valia por vários elementos.
Curiosamente, connosco não abusava muito da sua natural superioridade física. No futebol profissional, no entanto, tornou-se temido, porque não usava de muita cerimónia para impor a sua «vantagem competitiva».
Era, claramente, um dos nossos heróis de adolescência. Desde os treze anos que se integrara no Sporting Clube de Portugal, escolhido num ápice, pelo famoso Travassos, que, na altura, orientava os juvenis do clube de Alvalade.
Rapidamente enveredou pelo profissionalismo desportivo, encerrando a sua breve carreira estudantil. Outras fadas, para outra vida, o haviam fadado, que o haveriam de levar para Espanha, onde casaria e teria uma passagem de alguns anos de sucesso, no duro campeonato espanhol.
No curto apontamento da página do SCP, na internet, pareceu-me lá encontrar uma imprecisão de pormenor. Embora V. Bastos se tenha notabilizado como Defesa-Central, julgo que, no final da sua carreira de jogador, depois de ter regressado de Espanha, jogou ainda na equipa principal do SCP, mas no lugar de Defesa-Direito, uma vezes, outras, no de Quarto-Defesa e não sempre a Central, como lá se refere.
Isto é o que me diz a minha memória futebolística : razoável, até aos finais dos anos 70, princípios de 80, muito definhante, daí para cá, e cada vez menos predisposta a acompanhar um desporto que se mercantilizou desmedidamente, para lá do imaginável, destruindo os antigos laços de genuína paixão clubista, fenómeno que só a completa atmosfera de alienação, que à sua roda se gerou, impede os mais de o reconhecer.
Contra o que é meu hábito, no que respeita a temas de crónicas ou de artigos, aqui deixo hoje uma nota de profunda saudade para com uma estrela do futebol da minha geração.
À família de Vitorino Bastos, endereço as minhas sentidas condolências. Que o nosso ídolo de adolescência descanse em paz, tão cedo ele nos desaparece.
Guardemos, pois, de Vitorino Bastos, sobretudo os que pessoalmente o conheceram, com especial referência para os seus antigos companheiros de Escola, designadamente, os da nossa velha e querida Afonso Domingues, todas aquelas boas memórias de um já algo distante, mas sempre alegre e grato convívio.
AV_Lisboa, 31 de Maio de 2006
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Breve nota biográfica de Vitorino Bastos
- Vitorino Manuel Antunes Bastos era natural de Lisboa, onde nasceu a 4 de Julho de 1950. Foi aluno da Escola Industrial Afonso Domingues, nos anos lectivos de 1964/65 e 65/66.
- Fez a sua estreia na equipa principal do Sporting, em 1 de Janeiro de 1969, num jogo contra o Atlético Clube de Portugal, em Alvalade, que o SPC ganhou por 4-2, na época de 1968/69.
- Depois de três temporadas em Espanha, ao serviço do Saragoça, regressou ao seu clube de sempre em Portugal, o Sporting, clube que representou até ao fim da sua carreira de jogador, em 1983.
- Como jogador, foi campeão nacional nas épocas de 1973/74, 1979/80 e 1981/82. Venceu três Taças de Portugal nas épocas de 1972/73, 1973/74 e 1981/82 e uma Supertaça, na de 1981/82.
- Em nove temporadas, como jogador do Sporting, disputou 182 jogos e marcou um golo, num jogo contra o Varzim, na época de 1979/80, época em que o clube se sagrou campeão.
- Como Treinador de Futebol, destacou-se ao comando do Alverca, na época de 1994/95, levando esta equipa da II Divisão B à II de Honra. Foi posteriormente Treinador-Adjunto do SPC, integrado nas equipas técnicas de Augusto Inácio, Laszlo Boloni e Fernando Santos, ajudando ainda o clube na conquista de mais dois Campeonatos Nacionais (1999/2000 e 2001/2002), uma Taça de Portugal e uma Supertaça.
- Quando faleceu, a 30 de Maio de 2006, no Hospital Pulido Valente, em Lisboa, fazia parte do Departamento de Recrutamento de Jogadores do Sporting Clube de Portugal, sendo um dos responsáveis pela observação dos atletas que o SPC mantém na situação de emprestados, ao serviço de outros clubes.
Apesar de há muito lhe haver perdido o rasto, conservo ainda fartas recordações da sua presença, até pelo menos metade da década de 80, quando ainda frequentávamos a mesma barbearia, já então convertida em Salão de Cabeleireiro de Homens e Senhoras, ali ao fundo da Rua Laureano de Oliveira, perto do Apeadeiro dos Caminhos de Ferro, da então suburbana vila de Moscavide.
Mesmo depois de termos saído de Moscavide, continuámos a frequentar os cuidados do Cabeleireiro Martins, homem de mãos adestradas, com vários diplomas de prémios ganhos em concursos nacionais e internacionais expostos nas paredes do seu modernizado salão. A casa dos pais do Vitorino ficava quase defronte deste estabelecimento e ali o encontrava ainda nos anos 80.
Era ele o nosso Vitorino, moço bastante popular, em Moscavide, mesmo para os benfiquistas como eu, que com ele joguei futebol e andebol, nos anos 60, nos Campeonatos Escolares e nas partidinhas dos intervalos das aulas, na velha Escola Industrial Afonso Domingues, EIAD, de Marvila, umas vezes na sua equipa, outras como adversário.
Encontrávamo-lo também, já depois de interrompida a sua curta vida estudantil, nos finais dos anos 60, na pastelaria Rita, na Avenida de Moscavide, sempre muito festejado, obviamente, pelas exibições que fazia em Alvalade e pela aura de estrela que o cercava, embora sem nada que se assemelhasse ao exagero alienante que hoje se observa, quanto ao interesse pelo futebol.
Tinha um porte atlético de grande envergadura, logo aos 12-13 anos, o que contrastava com a nossa comum fragilidade, apesar de ser pouco mais velho que a maioria de nós, que com ele nos defrontávamos. Fez-se um homenzarrão muito cedo, enquanto nós fomos crescendo fisicamente, aos poucos, sem nunca chegarmos, contudo, nem lá perto, à sua notória robustez.
Era um portento de força, com um estilo muito próprio de jogar, com arranques impetuosos, variações de velocidade e remates fortíssimos. Todos o queriam sempre na equipa, porque ele, na verdade, valia por vários elementos.
Curiosamente, connosco não abusava muito da sua natural superioridade física. No futebol profissional, no entanto, tornou-se temido, porque não usava de muita cerimónia para impor a sua «vantagem competitiva».
Era, claramente, um dos nossos heróis de adolescência. Desde os treze anos que se integrara no Sporting Clube de Portugal, escolhido num ápice, pelo famoso Travassos, que, na altura, orientava os juvenis do clube de Alvalade.
Rapidamente enveredou pelo profissionalismo desportivo, encerrando a sua breve carreira estudantil. Outras fadas, para outra vida, o haviam fadado, que o haveriam de levar para Espanha, onde casaria e teria uma passagem de alguns anos de sucesso, no duro campeonato espanhol.
No curto apontamento da página do SCP, na internet, pareceu-me lá encontrar uma imprecisão de pormenor. Embora V. Bastos se tenha notabilizado como Defesa-Central, julgo que, no final da sua carreira de jogador, depois de ter regressado de Espanha, jogou ainda na equipa principal do SCP, mas no lugar de Defesa-Direito, uma vezes, outras, no de Quarto-Defesa e não sempre a Central, como lá se refere.
Isto é o que me diz a minha memória futebolística : razoável, até aos finais dos anos 70, princípios de 80, muito definhante, daí para cá, e cada vez menos predisposta a acompanhar um desporto que se mercantilizou desmedidamente, para lá do imaginável, destruindo os antigos laços de genuína paixão clubista, fenómeno que só a completa atmosfera de alienação, que à sua roda se gerou, impede os mais de o reconhecer.
Contra o que é meu hábito, no que respeita a temas de crónicas ou de artigos, aqui deixo hoje uma nota de profunda saudade para com uma estrela do futebol da minha geração.
À família de Vitorino Bastos, endereço as minhas sentidas condolências. Que o nosso ídolo de adolescência descanse em paz, tão cedo ele nos desaparece.
Guardemos, pois, de Vitorino Bastos, sobretudo os que pessoalmente o conheceram, com especial referência para os seus antigos companheiros de Escola, designadamente, os da nossa velha e querida Afonso Domingues, todas aquelas boas memórias de um já algo distante, mas sempre alegre e grato convívio.
AV_Lisboa, 31 de Maio de 2006
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Breve nota biográfica de Vitorino Bastos
- Vitorino Manuel Antunes Bastos era natural de Lisboa, onde nasceu a 4 de Julho de 1950. Foi aluno da Escola Industrial Afonso Domingues, nos anos lectivos de 1964/65 e 65/66.
- Fez a sua estreia na equipa principal do Sporting, em 1 de Janeiro de 1969, num jogo contra o Atlético Clube de Portugal, em Alvalade, que o SPC ganhou por 4-2, na época de 1968/69.
- Depois de três temporadas em Espanha, ao serviço do Saragoça, regressou ao seu clube de sempre em Portugal, o Sporting, clube que representou até ao fim da sua carreira de jogador, em 1983.
- Como jogador, foi campeão nacional nas épocas de 1973/74, 1979/80 e 1981/82. Venceu três Taças de Portugal nas épocas de 1972/73, 1973/74 e 1981/82 e uma Supertaça, na de 1981/82.
- Em nove temporadas, como jogador do Sporting, disputou 182 jogos e marcou um golo, num jogo contra o Varzim, na época de 1979/80, época em que o clube se sagrou campeão.
- Como Treinador de Futebol, destacou-se ao comando do Alverca, na época de 1994/95, levando esta equipa da II Divisão B à II de Honra. Foi posteriormente Treinador-Adjunto do SPC, integrado nas equipas técnicas de Augusto Inácio, Laszlo Boloni e Fernando Santos, ajudando ainda o clube na conquista de mais dois Campeonatos Nacionais (1999/2000 e 2001/2002), uma Taça de Portugal e uma Supertaça.
- Quando faleceu, a 30 de Maio de 2006, no Hospital Pulido Valente, em Lisboa, fazia parte do Departamento de Recrutamento de Jogadores do Sporting Clube de Portugal, sendo um dos responsáveis pela observação dos atletas que o SPC mantém na situação de emprestados, ao serviço de outros clubes.
22.5.06
O 25 de Abril e a Contradição Aparente
Alguns leitores poderão ter achado tocados de contradição os dois últimos artigos que aqui escrevi : um, de saudação ao 25 de Abril de 1974 e o outro, comentando um texto célebre de António José Saraiva com muitas críticas a certos aspectos da Revolução de Abril, aquilo que então se designava por PREC, Processo Revolucionário em Curso.
Gostaria, por isso, de voltar ao assunto. Não porque pretenda estar ao abrigo desse pecadilho da contradição, sempre mais que possível em matéria político-revolucionária, mas porque creia que ela, na verdade, não existe no caso presente.
A saudação de Abril foi absolutamente genuína da minha parte. Vibrei com a data, como milhões de compatriotas; a ela aderi, com o entusiasmo da juventude, porventura excessivo, demasiado esperançoso, ainda sem o natural cepticismo dos anos, que costuma temperar euforias, as revolucionárias e as outras.
Apesar da falta de experiência política, vivera já o suficiente para perceber que o Regime de então estava esgotado, enredado numa Guerra para a qual não fora capaz de descortinar uma solução política, no decurso de quase década e meia, i.e., desde de 1961, até ao ano de 1974.
O ano de 1961, aliás, havia começado de forma premonitoriamente fatídica para o regime de Salazar, com o desvio do paquete Santa Maria, logo em Janeiro, a que se seguiu o início das hostilidades em Angola, em Fevereiro do mesmo ano, terminando com o saque da « jóia da coroa quinhentista », com a invasão dos territórios indianos de Goa, Damão e Diu, pelas tropas de Nehru, político ambicioso, que, afinal, também demonstrou que não era tão pacifista como se apregoava.
A resposta do Governo português às explosões de ódio rácico em Angola, no começo desse ano de 1961, foi pronta, no restabelecimento da ordem e da convivência entre as Comunidades, como lhe competia, mas a ela deveria ter-se seguido uma atitude de flexibilidade e de maior astúcia política, concebendo um plano de entendimento político, que contemplasse uma consulta popular, sobre os destinos dos territórios coloniais, com plena salvaguarda dos bens dos colonos europeus e dos interesses de Portugal e com a garantia de constituição de grupos políticos de diferentes inspirações doutrinárias e não admitindo apenas aqueles que representassem as facções armadas que contestavam a autoridade portuguesa.
Aqui residiria a prova de engenho político do Governo português. Várias circunstâncias então prevalecentes fortaleceriam a sua posição. A falta de maleabilidade política do Governo levou-o a enquistar-se numa rigidez imobilista, apresentada sob a forma de uma coerência pretensamente sólida, mas, na prática, de uma total ineficácia.
Entretanto, os anos foram passando e nem a fraqueza das guerrilhas, sobretudo em Angola, nem o grande desenvolvimento económico alcançado nos territórios lograram forjar a abertura política que se impunha. Essa falta de visão política haveria, pois, de custar caro ao Regime, com a revolução dos militares em 1974, derrubando o Governo e desencadeando uma tumultuosa mudança política, com todos os episódios de confusão e de desorientação que depois se conheceram.
Em Política, a oportunidade vale ouro e, quem a desperdiça, depois, ver-se-á sempre penalizado, não podendo, no entanto, de tal se queixar. Por isso temos necessidade de políticos, estadistas atentos às vicissitudes das diferentes épocas em que vivemos. Mas também é verdade que não se deve pedir a certas personagens aquilo que elas, pela sua formação e currículo conhecidos, nunca poderão efectivamente dar.
Salazar não acreditava no sistema democrático-parlamentar, ainda menos nos partidos e desconfiava da base moral do Capitalismo. Tinha uma mentalidade camponesa, ruralista e prezava acima de tudo a ordem, a disciplina, a obediência, a honestidade, as virtudes típicas do mundo em que fora criado, na sua Beira Alta pacata, de gente maioritariamente analfabeta, pobre e honrada, sobrevivente de um quadro de vida pré-industrial, em muitos pontos quase medievo.
Neste caldo de cultura nacional, reforçado pela emergência de soluções políticas autoritárias em grande parte da Europa do período entre as Guerras do século XX, dificilmente vingaria um convicto democrata desenvolvimentista, com a agravante de Portugal ter vivido, após a instauração da República, quase dois decénios de forte turbulência social e política que puseram o País à beira da bancarrota.
Depois do longo e duro consulado de Salazar, veio o do mais brando e melífluo Caetano, que durou cerca de 6 anos, de 1968 a 1974, já com um passivo enorme em relação à solução do problema das Guerras em África. Também Caetano não era um democrata de formação, embora fosse mais aberto à ideia de desenvolvimento económico e cultural, que, aliás, ainda conseguiu impulsionar com resultados muito satisfatórios, mas ainda assim insuficientes e, quanto às Guerras do Ultramar, problema fulcral do Regime, não se mostrou capaz de engendrar uma solução para elas, vindo a desiludir os sectores mais interessados na modernização do País.
Mas, dizer isto, não significa que tenhamos de absolver todas as acções praticadas pelos agentes políticos do pós-25 de Abril: a cada um a sua responsabilidade. Nunca poderemos justificar a nossa própria falta de consistência, com a de uma outra anterior, porque ficarão sempre as duas por condenar.
Foi mais ou menos neste sentido que António José Saraiva conduziu a sua argumentação naquele seu contundente artigo, diria mesmo que o terá feito, com propósito deliberadamente provocatório, para despertar consciências, numa altura em que poucos, no campo democrático, se atreviam a sair do tom «politicamente correcto» desse tempo. Só o denodado temperamento de escassos intelectuais, entre os quais é justo destacar AJS e Jorge de Sena, insuspeitos de simpatias salazaristas, mas lúcidos e desinibidos para exercer a crítica do novo regime, nos desconchavos que este ia velozmente produzindo.
Seguiram-se ao 25 de Abril demasiados erros e confusões, embalados por muita gente que estaria obrigada a dar provas de maior prudência e clarividência políticas. Não seria decerto aos militares do MFA, alguns ainda bastante jovens, nem aos voluntariosos estudantes das Universidades que as teríamos de pedir, mas à sociedade civil de então, às suas elites intelectuais e profissionais, que, na sua esmagadora maioria, falharam também a sua missão, por medo, por falta de convicções, certamente por muitas razões, qualquer delas, contudo, incompatível com o estatuto de elites, em que se julgavam situar, eles e os outros que assim mesmo se denominavam.
Desafortunadamente, para eles e também para nós, desapareceram cedo aqueles dois grandes vultos da cultura portuguesa : Jorge de Sena, logo a meio do ano de 1978, com 59 anos de idade, em plena pujança da sua intervenção intelectual, literária e cívica, e António José Saraiva, em Março de 1993, em circunstância tão inesperada quanto dramática, em plena sessão pública de participação cívica.
Ficou-nos um imenso vazio difícil de preencher, pela alta categoria intelectual, ética e cívica destes dois excelentes Professores Universitários, amigos de intervir na res publica, com oportunidade e acerto raros.
Vê-se bem, pelo actual panorama, a grande falta que eles nos fazem. Não temos hoje muitos interventores culturais, os chamados intelectuais, capazes de exercer idêntico espírito crítico com autoridade e isenção. Pelo contrário, assistimos a uma arregimentação da maioria deles, sempre alinhados nas suas intervenções, o que lhes retira credibilidade e impede que nasça, na restante população, o culto do exemplo que eles lhe poderiam e deveriam oferecer.
É este um dos nossos dramas presentes: a falta de elites com autoridade demonstrada para que a sua voz seja escutada. A sua ausência debilita extraordinariamente a nossa sociedade, deixando-a a vogar, ao sabor do acaso e dos interesses mesquinhos do momento, sem rumo, sem firmeza, sem convicção, sem consciência sequer.
Eis como nos encontramos, trinta e dois anos depois daquela esperançosa data, agora com o sentimento acentuado de amarga desilusão, circunstância que ainda mais dificulta a ultrapassagem da presente crise económica, mas também social, cultural e cívica em que vivemos. Só com exemplos vivos de saber, coragem e virtude, comprovadamente mobilizadores, dela conseguiremos sair.
O tempo, inexorável julgador, dirá se ainda verdadeiramente alcançaremos esse salvífico desiderato ...
Até lá, não nos resta senão ir remando, porque : Navegar é preciso…, naturalmente, desde que no rumo certo… mas, aqui chegados, voltaríamos inevitavelmente ao início da nossa interminável questão…
AV_Lisboa, 22 de Maio de 2006
Gostaria, por isso, de voltar ao assunto. Não porque pretenda estar ao abrigo desse pecadilho da contradição, sempre mais que possível em matéria político-revolucionária, mas porque creia que ela, na verdade, não existe no caso presente.
A saudação de Abril foi absolutamente genuína da minha parte. Vibrei com a data, como milhões de compatriotas; a ela aderi, com o entusiasmo da juventude, porventura excessivo, demasiado esperançoso, ainda sem o natural cepticismo dos anos, que costuma temperar euforias, as revolucionárias e as outras.
Apesar da falta de experiência política, vivera já o suficiente para perceber que o Regime de então estava esgotado, enredado numa Guerra para a qual não fora capaz de descortinar uma solução política, no decurso de quase década e meia, i.e., desde de 1961, até ao ano de 1974.
O ano de 1961, aliás, havia começado de forma premonitoriamente fatídica para o regime de Salazar, com o desvio do paquete Santa Maria, logo em Janeiro, a que se seguiu o início das hostilidades em Angola, em Fevereiro do mesmo ano, terminando com o saque da « jóia da coroa quinhentista », com a invasão dos territórios indianos de Goa, Damão e Diu, pelas tropas de Nehru, político ambicioso, que, afinal, também demonstrou que não era tão pacifista como se apregoava.
A resposta do Governo português às explosões de ódio rácico em Angola, no começo desse ano de 1961, foi pronta, no restabelecimento da ordem e da convivência entre as Comunidades, como lhe competia, mas a ela deveria ter-se seguido uma atitude de flexibilidade e de maior astúcia política, concebendo um plano de entendimento político, que contemplasse uma consulta popular, sobre os destinos dos territórios coloniais, com plena salvaguarda dos bens dos colonos europeus e dos interesses de Portugal e com a garantia de constituição de grupos políticos de diferentes inspirações doutrinárias e não admitindo apenas aqueles que representassem as facções armadas que contestavam a autoridade portuguesa.
Aqui residiria a prova de engenho político do Governo português. Várias circunstâncias então prevalecentes fortaleceriam a sua posição. A falta de maleabilidade política do Governo levou-o a enquistar-se numa rigidez imobilista, apresentada sob a forma de uma coerência pretensamente sólida, mas, na prática, de uma total ineficácia.
Entretanto, os anos foram passando e nem a fraqueza das guerrilhas, sobretudo em Angola, nem o grande desenvolvimento económico alcançado nos territórios lograram forjar a abertura política que se impunha. Essa falta de visão política haveria, pois, de custar caro ao Regime, com a revolução dos militares em 1974, derrubando o Governo e desencadeando uma tumultuosa mudança política, com todos os episódios de confusão e de desorientação que depois se conheceram.
Em Política, a oportunidade vale ouro e, quem a desperdiça, depois, ver-se-á sempre penalizado, não podendo, no entanto, de tal se queixar. Por isso temos necessidade de políticos, estadistas atentos às vicissitudes das diferentes épocas em que vivemos. Mas também é verdade que não se deve pedir a certas personagens aquilo que elas, pela sua formação e currículo conhecidos, nunca poderão efectivamente dar.
Salazar não acreditava no sistema democrático-parlamentar, ainda menos nos partidos e desconfiava da base moral do Capitalismo. Tinha uma mentalidade camponesa, ruralista e prezava acima de tudo a ordem, a disciplina, a obediência, a honestidade, as virtudes típicas do mundo em que fora criado, na sua Beira Alta pacata, de gente maioritariamente analfabeta, pobre e honrada, sobrevivente de um quadro de vida pré-industrial, em muitos pontos quase medievo.
Neste caldo de cultura nacional, reforçado pela emergência de soluções políticas autoritárias em grande parte da Europa do período entre as Guerras do século XX, dificilmente vingaria um convicto democrata desenvolvimentista, com a agravante de Portugal ter vivido, após a instauração da República, quase dois decénios de forte turbulência social e política que puseram o País à beira da bancarrota.
Depois do longo e duro consulado de Salazar, veio o do mais brando e melífluo Caetano, que durou cerca de 6 anos, de 1968 a 1974, já com um passivo enorme em relação à solução do problema das Guerras em África. Também Caetano não era um democrata de formação, embora fosse mais aberto à ideia de desenvolvimento económico e cultural, que, aliás, ainda conseguiu impulsionar com resultados muito satisfatórios, mas ainda assim insuficientes e, quanto às Guerras do Ultramar, problema fulcral do Regime, não se mostrou capaz de engendrar uma solução para elas, vindo a desiludir os sectores mais interessados na modernização do País.
Mas, dizer isto, não significa que tenhamos de absolver todas as acções praticadas pelos agentes políticos do pós-25 de Abril: a cada um a sua responsabilidade. Nunca poderemos justificar a nossa própria falta de consistência, com a de uma outra anterior, porque ficarão sempre as duas por condenar.
Foi mais ou menos neste sentido que António José Saraiva conduziu a sua argumentação naquele seu contundente artigo, diria mesmo que o terá feito, com propósito deliberadamente provocatório, para despertar consciências, numa altura em que poucos, no campo democrático, se atreviam a sair do tom «politicamente correcto» desse tempo. Só o denodado temperamento de escassos intelectuais, entre os quais é justo destacar AJS e Jorge de Sena, insuspeitos de simpatias salazaristas, mas lúcidos e desinibidos para exercer a crítica do novo regime, nos desconchavos que este ia velozmente produzindo.
Seguiram-se ao 25 de Abril demasiados erros e confusões, embalados por muita gente que estaria obrigada a dar provas de maior prudência e clarividência políticas. Não seria decerto aos militares do MFA, alguns ainda bastante jovens, nem aos voluntariosos estudantes das Universidades que as teríamos de pedir, mas à sociedade civil de então, às suas elites intelectuais e profissionais, que, na sua esmagadora maioria, falharam também a sua missão, por medo, por falta de convicções, certamente por muitas razões, qualquer delas, contudo, incompatível com o estatuto de elites, em que se julgavam situar, eles e os outros que assim mesmo se denominavam.
Desafortunadamente, para eles e também para nós, desapareceram cedo aqueles dois grandes vultos da cultura portuguesa : Jorge de Sena, logo a meio do ano de 1978, com 59 anos de idade, em plena pujança da sua intervenção intelectual, literária e cívica, e António José Saraiva, em Março de 1993, em circunstância tão inesperada quanto dramática, em plena sessão pública de participação cívica.
Ficou-nos um imenso vazio difícil de preencher, pela alta categoria intelectual, ética e cívica destes dois excelentes Professores Universitários, amigos de intervir na res publica, com oportunidade e acerto raros.
Vê-se bem, pelo actual panorama, a grande falta que eles nos fazem. Não temos hoje muitos interventores culturais, os chamados intelectuais, capazes de exercer idêntico espírito crítico com autoridade e isenção. Pelo contrário, assistimos a uma arregimentação da maioria deles, sempre alinhados nas suas intervenções, o que lhes retira credibilidade e impede que nasça, na restante população, o culto do exemplo que eles lhe poderiam e deveriam oferecer.
É este um dos nossos dramas presentes: a falta de elites com autoridade demonstrada para que a sua voz seja escutada. A sua ausência debilita extraordinariamente a nossa sociedade, deixando-a a vogar, ao sabor do acaso e dos interesses mesquinhos do momento, sem rumo, sem firmeza, sem convicção, sem consciência sequer.
Eis como nos encontramos, trinta e dois anos depois daquela esperançosa data, agora com o sentimento acentuado de amarga desilusão, circunstância que ainda mais dificulta a ultrapassagem da presente crise económica, mas também social, cultural e cívica em que vivemos. Só com exemplos vivos de saber, coragem e virtude, comprovadamente mobilizadores, dela conseguiremos sair.
O tempo, inexorável julgador, dirá se ainda verdadeiramente alcançaremos esse salvífico desiderato ...
Até lá, não nos resta senão ir remando, porque : Navegar é preciso…, naturalmente, desde que no rumo certo… mas, aqui chegados, voltaríamos inevitavelmente ao início da nossa interminável questão…
AV_Lisboa, 22 de Maio de 2006
9.5.06
Um Iberista no Governo de Portugal
Neste último fim-de-semana, vieram a lume notícias que, pela sua gravidade, deveriam ser urgentemente esclarecidas pelo Governo.
À cabeça delas, está a das declarações inauditas de um Ministro português, o dos Transportes, Mário Lino, que, na Galiza, em território espanhol e discursando para espanhóis, se confessou um convicto iberista, partidário da junção dos dois estados existentes na Península Hispânica e, ainda levou mais longe o seu desconcerto, ao afirmar que Portugal e Espanha têm uma história e língua comuns.
Isto é grave e não pode passar sem reparo. Se o Governo a que este Ministro pertence fosse dirigido por alguém com verdadeiro sentido de dignidade patriótica, a esta hora Mário Lino estaria ou a retractar-se de tais dislates ou, se se recusasse a fazê-lo, estaria inexoravelmente demitido.
Como se pode tolerar que um Ministro de Portugal defenda a diluição do Estado soberano que representa numa nova associação política com o Estado que, historicamente, sempre constituiu ameaça à independência de Portugal, Estado esse que, ainda hoje, mantém na sua posse um pedaço de território português, em completo desrespeito de tratados internacionais que há muito o intimaram a restituir o território esbulhado ?
Como se compreende que um Ministro português, tendo jurado desempenhar com lealdade as funções que lhe foram confiadas, no quadro constitucional vigente, advogue posições que enfraquecem e comprometem a soberania portuguesa ?
Num momento em que as várias nacionalidades espanholas tentam obter do Governo Central de Madrid alargamentos cada vez maiores da sua autonomia regional, nalguns casos, como na Catalunha e no País Basco, visando mesmo abertamente a separação política, noutros, como na Galiza, com menos ímpeto, mas com igual desejo, como se pode aceitar que um Ministro de Portugal desvalorize aquilo que múltiplas gerações de seus compatriotas, esforçadamente, em decisivos momentos históricos, lograram conquistar, com elevado preço de sangue ?
Quero crer que o súbito desvario do Ministro Mário Lino não deixe de causar vivo repúdio no País.
Se, por absurdo, tal não acontecesse, pelo menos entre os sectores da população mais conscientes, algo exaustos, mas ainda não sucumbidos, seria sinal de que profunda doença teria já minado o desgastado corpo desta velha Pátria, outrora designada de mui nobre e valente Nação, aquela que, há quase 600 anos, daqui saiu nas Caravelas, em busca da aventura, desafiando o vasto Mundo, então de bem poucos conhecido.
Miremo-nos hoje, de novo, no seu exemplo de coragem e perseverança, para rasgarmos este espesso manto de negrume que paira em nosso redor, que nos tolhe os movimentos, que nos impede de progredir, de recobrar a nossa antiga e sempre saudada dignidade.
Mas, para isso, caríssimos concidadãos, mister se torna arredar, neutralizar aqueles que mal nos representam, que nos desonram com as suas atitudes levianas, inconscientes, indignas das missões que lhes foram confiadas, ainda que a coberto de uma legitimidade formalmente democrática.
AV_Lisboa, 09 de Maio de 2006
À cabeça delas, está a das declarações inauditas de um Ministro português, o dos Transportes, Mário Lino, que, na Galiza, em território espanhol e discursando para espanhóis, se confessou um convicto iberista, partidário da junção dos dois estados existentes na Península Hispânica e, ainda levou mais longe o seu desconcerto, ao afirmar que Portugal e Espanha têm uma história e língua comuns.
Isto é grave e não pode passar sem reparo. Se o Governo a que este Ministro pertence fosse dirigido por alguém com verdadeiro sentido de dignidade patriótica, a esta hora Mário Lino estaria ou a retractar-se de tais dislates ou, se se recusasse a fazê-lo, estaria inexoravelmente demitido.
Como se pode tolerar que um Ministro de Portugal defenda a diluição do Estado soberano que representa numa nova associação política com o Estado que, historicamente, sempre constituiu ameaça à independência de Portugal, Estado esse que, ainda hoje, mantém na sua posse um pedaço de território português, em completo desrespeito de tratados internacionais que há muito o intimaram a restituir o território esbulhado ?
Como se compreende que um Ministro português, tendo jurado desempenhar com lealdade as funções que lhe foram confiadas, no quadro constitucional vigente, advogue posições que enfraquecem e comprometem a soberania portuguesa ?
Num momento em que as várias nacionalidades espanholas tentam obter do Governo Central de Madrid alargamentos cada vez maiores da sua autonomia regional, nalguns casos, como na Catalunha e no País Basco, visando mesmo abertamente a separação política, noutros, como na Galiza, com menos ímpeto, mas com igual desejo, como se pode aceitar que um Ministro de Portugal desvalorize aquilo que múltiplas gerações de seus compatriotas, esforçadamente, em decisivos momentos históricos, lograram conquistar, com elevado preço de sangue ?
Quero crer que o súbito desvario do Ministro Mário Lino não deixe de causar vivo repúdio no País.
Se, por absurdo, tal não acontecesse, pelo menos entre os sectores da população mais conscientes, algo exaustos, mas ainda não sucumbidos, seria sinal de que profunda doença teria já minado o desgastado corpo desta velha Pátria, outrora designada de mui nobre e valente Nação, aquela que, há quase 600 anos, daqui saiu nas Caravelas, em busca da aventura, desafiando o vasto Mundo, então de bem poucos conhecido.
Miremo-nos hoje, de novo, no seu exemplo de coragem e perseverança, para rasgarmos este espesso manto de negrume que paira em nosso redor, que nos tolhe os movimentos, que nos impede de progredir, de recobrar a nossa antiga e sempre saudada dignidade.
Mas, para isso, caríssimos concidadãos, mister se torna arredar, neutralizar aqueles que mal nos representam, que nos desonram com as suas atitudes levianas, inconscientes, indignas das missões que lhes foram confiadas, ainda que a coberto de uma legitimidade formalmente democrática.
AV_Lisboa, 09 de Maio de 2006